Pode parecer normal para a maioria, mas a gente desacredita que passa boa parte da vida feito mito grego. Diz o mito, que em princípio tínhamos quatro braços, quatro pernas, todos os sexos. Fomos repartidos e desde então ficamos buscando nossa metade perdida durante a vida.

O mito pode parecer bizarro, mas a grosso modo, não deixa de ser um tanto parecido com a realidade da mulher grávida. Mesmo homens que não podem ter essa experiência de carregar uma vida no ventre, já estiveram um dia nele, já tiveram sua metade separada de si. Embora a mulher grávida seja uma analogia literal, essa simbiose ocorre mesmo com corpos separados fisicamente, sem nos darmos conta da anomalia que nos metemos.

Ouço com curiosa frequência, crianças me perguntando como os mamíferos fazem para ter filhotes na floresta ou nos oceanos, onde não existem médicos. Quando você as ajuda a entender o que acontece, vem uma perplexidade, essa surpresa de ser uma parte visceral do outro, feito o mito que perdeu sua metade.

Se manter eternamente no ventre é transformar o milagre da vida em morte. E ocupar a própria vida é também um tipo de nascimento, separar-se um pouco do outro, deixar de ser uma extensão. Duas subjetividades não podem ocupar o mesmo lugar, alguém terá que se sacrificar, terá que se anular, terá que deixar de existir, tal qual o bebê que não nasce.

No campo do amor, manter a singularidade pode ser insuportável, pois doem como uma mutilação do corpo. Qualquer tentativa de separação simbólica é sentida como um corte, andar com duas pernas parecem insuficientes. Essa dor do corte fala da dor de onde existe um excesso, quem sabe essas pernas e braços extras. Onde não podemos criar, nos excedemos. Sufocamos em nós mesmos, sufocamos o outro. São aqueles que ficam grávidos uma vida toda, por vezes, desconfortáveis com o tamanho da barriga na hora de dormir, dos chutes, complicações nas costas, mas enfim, aprendem a se incomodar sem se importar.

Tem também quem aceita ter braços e pernas separados um do outro e seguem com as dificuldades que são próprias de quem deseja preservar a si mesmo dessa sedução de fazer dois, um só. Seguem inventando e reinventando, criando o relacionamento. Uma trabalheira sem fim. Isso não significa que não gere uma boa dose de sofrimento e conflito, advirto qualquer tipo de idealização.

E existem aqueles que a separação é literal, silenciosamente entram em trabalho de parto, nascem e sobrevivem, mesmo sentindo-se na floresta, nessa experiência que chega a afetar o corpo, onde não existe parteira de casais.

Mancos de duas pernas, partem em direção a vida.

Eduarda Renaux

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