Ou seria sobre A Bela e a Fera?

Veio em tempo e em boa hora. Tem gafes que denunciam tanto o retrocesso que chegam a servir de trampolim para o avanço. O “bela, recatada e do lar” foi tão trágico que alguns que tomavam a luta pela ocupação da mulher no espaço público com nenhum direito a menos como um mimimi tiveram que pegar nas próprias mãos a dimensão do problema e começar se rever. Não tardou para o atual presidente atribuir as mulheres o dom da matemática do lar. De gafe em gafe, voltem para suas casas!

Desculpa, Cinderela: bela, recatada e do lar. Já não podemos deixar de ver o legado de Bela e também de Mulan (esse terá de ser um texto a parte). Nas palavras da própria personagem, “quero mais do que uma vida provinciana”, a letrada da vida não gostava do que lia nos homens. Gostava de um bom romance e até de um príncipe encantado, mas que fosse do seu desejo e que tivesse cara e jeito de gente. Sua condição subjetiva era que apenas poderia amar um homem se este pudesse deixar de ser uma fera.

Sim, desde muito, temos de ver, tratar e respeitar os homens como se fossem feras, que não controlam seus impulsos. Gaston o homem belo e narcisista do vilarejo “apaixonado” por Bela, a vê como uma presa, uma caça. Ele é tão fera quanto a própria Fera por maldição, que fora amaldiçoado por não renunciar seu infantil em prol do crescimento. Era um príncipe egoísta, grosseiro e mimado.

O infantil é a fera indomável que cada um carrega no peito. No filme, o infantil e o homem possuem uma harmonia peculiar e interessante. Os adultos tornaram-se utensílios domésticos na maldição. Nada mais justo quando os adultos se colocam a serviço dos caprichos do príncipe. As feras devem ser cuidadas, mimadas e ter compaixão do que não conseguem controlar, afinal não conseguem conter-se.

Eles traem pois não se controlam, eles estupram pois não se controlam, eles agridem pois não se controlam, eles matam pois não se controlam. A lista segue. E não que mulheres não o façam, mas o tom fica um bocado diferente. E toda a mulher já viveu na pele essa diferença em algum momento de sua vida.

O filme é uma excelente metáfora de que uma mulher ganha espaço nas letras que destemidamente constrói para narrar a sua vida na medida em que os homens vão renunciando as feras em si mesmos. A recíproca é verdadeira. A emancipação de uma mulher só é possível quando ela renúncia o lugar protegido de ser propriedade do homem. De um homem-fera, o único lugar possível para uma mulher é de prisioneira. No filme, mesmo já encantada pela Fera, o casal só é possível quando Bela é libertada. E ela escolhe voltar. Pois não se trata de uma emancipação que supõe um delírio de que não se pode desejar o amor de casal, o lar, a maternidade, mas que as mulheres possam escolher. O destino imposto é uma prisão.

rosa

Agora o obvio virou nebuloso e as certezas viraram dúvidas. Só sendo muito esquisito e destemido para topar essa. A Bela e a Fera desafiam homens e mulheres a quebrar a maldição que nos assombra a tanto tempo. Essa pauta ainda tem muito o que avançar e a cada direito a menos ou retrocesso dos direitos conquistados pelas mulheres em prol do recato, uma pétala de nossa rosa cai. Maldição para ambos os lados!

Eduarda Renaux

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