A próxima da fila era eu, certamente. A última de minhas amigas de nossa geração havia acabado de falecer de infarto fulminante. Coitada! Me corrijo prontamente em pensamento, coitada nada! Essa sim sabia aproveitar a vida. Tinha 88 anos e posso contar nos dedos seus dias de mal humor. Inclusive tenho uma forte impressão que ainda namorava nos finais de semana o que contribuía muito para sua vitalidade.

Entre um cigarro e outro, tinha um olhar charmoso que até os mais jovens sentiam vontade de conhece-la melhor. Não era das amigas mais ouvintes que eu tinha, mas posso afirmar sem dúvida que os momentos mais intensos foi ela que me permitiu viver.

Ela amava velórios! Não das pessoas desconhecidas, claro! Mas tinha uma estranha filosofia de que a perda a motivava a compreensão do que o falecido havia lhe deixado como legado. Dizia que em vida aproveitamos as pessoas, na morte aproveitamos as lembranças.

Ela pensava que caso não tivesse motivos para agradecer a boa relação com o morto, ia ao velório não para lamentar a perda, mas lamentar o desencontro em vida. Os que não a conheciam podiam jurar que os mais distantes foram os que mais lhe despertaram sofrimento. Como poderia mostrar tamanha tristeza para os distantes e tamanho brilho para os próximos?

Penso que essa era uma possibilidade que apenas ela conseguia usufruir e eu a invejava por isso. Ela ficava matracando durante os enterros, lembrando com alegria cada particularidade que teve com o defunto. Eu achava até graça, pois de alguma forma, ela dava vida ao corpo pálido. Como se com as palavras dela o sangue voltasse a produzir rubor naquela face já sem vida.

Eis outra característica dela que me intrigava, apenas a ela permitíamos que nos enchesse de vergonha em público. Era um vexame atrás do outro. Mas eram os momentos que mais nos sentíamos vivas. Os enterros de cada uma de nós, graças a ela, também eram vergonhosos. Risos, cantorias, falatório. Definitivamente não pegava bem.

Comigo já era diferente, eu chorava, sentia dor, nó na gargante, medo, angústia. Me perguntava como era morrer, o que se sentia, como seria não existir mais. Nesses momentos sofria de uma dor egoísta. Não sabia se lamentava pelo morto ou pela minha própria finitude. Lembrava com frequência de algo que tinha lido da Clarice Lispector: “Quando eu morrer vou sentir tanta falta de mim mesmo”.

Sim, era isso! Eu iria sentir falta de mim, porque sem mim, tudo ao meu redor não faria mais sentido. O mundo não sobreviveria sem a minha presença. Não o meu mundo. Era demais para minha cabeça. O pior da finitude é que você não perde apenas a vida, perde tudo que conhece dela.

Minha amiga prezava muito as lembranças e recentemente havia sido diagnosticada com Mal de Alzheimer grau leve. Tenho certeza que optou fazer o coração parar de funcionar a perder gradativamente tudo que os mortos lhe deixaram. Isso seria como perder uma herança de uma vida inteira numa mesa de cassino. Seria acabar na sarjeta psíquica.

O velório dela foi o único que festejei. Pois ela me permitia fazer coisas que eu sozinha não conseguia. Agora ela não mais existia para celebrar o que eu mesma não conseguia enquanto agonizava em lágrimas. Esse foi seu legado, já não posso mais me envergonhar de sua filosofia, devo encorporá-la em mim.

Me despedi grata e com o sol torrando meu rosto. Não poderia ser diferente, ela não permitiria nem mesmo o céu chorar sua partida. Saí do enterro, fui para a praia e com alegria passei o dia relembrando nossos momentos memoráveis. Sai da fila dos mortos e entrei no laço da vida. Realmente tem relações que só conseguimos dar significado com a partida! Disso ela já sabia…

Obrigada amiga!

Eduarda Renaux

 

 

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