Pelas ruelas que andou, pelas escadarias dos morros que subiu, pelos bancos que sentou, nas ribanceiras que desceu com o pés firmes ao chão, com os filhos pequenos em cada mão, não lhe faltou recurso para carregar dentro de si o que cada experiência lhe proporcionou. A vida era difícil, mas repetia a si mesmo todos os dias que não tinha motivos para reclamar. Mas duvidava se era falta de motivos ou falta de escolha. Vindo dessa mulher, era provável que tivesse motivos, mas essa era sua escolha.
Aprendeu a costurar para vestir os filhos. A aula acontecia no ponto de ônibus da cidade através de uma mulher de coração sensível que lhe ensinava as dicas de costura enquanto ambas esperavam os filhos saírem da escola. Voltava para casa, praticava, estranhava o resultado, mas envergonhava-se de perguntar suas dúvidas. Não eram filhos mal vestidos, apenas vestidos pela mãos ainda pouco habilidosas e envergonhadas. Quem sabe fizesse questão de vestir os filhos com sua costura para poder estar com eles onde fossem. Uma mãe borda nos filhos sua marca para que possam seguir seus caminhos sem que precise estar fisicamente presente. Esses bordados seguem gerações nas redes familiares.
Vinham em sua casa pessoas em fiapos, rasgos de gente. Pessoas cortadas pelas ofensas da vida. A cada palavra dela, um remendo. De costureira de roupa para os filhos, aprendeu a costurar a dor das pessoas na esperança de tempos melhores. Os remendados saiam de lá satisfeitos, como se saíssem com a melhor das malhas costuradas na própria pele. A malha do aconchego, do abrigo, do calor de um bem dizer. Seguindo a linha do aprendizado pela palavra, lembrança que carregava da mulher do coração sensível do ponto de ônibus, ensinou muita gente a costurar suas angustias através dos dizeres e da pronta escuta.
Todo o desamparo é um retalho que não encontra uma linha que o bordeie, não existe o ponto de remendo. Todo o ser humano é um remendado, as grifes escondem as costuras existenciais. E é por isso que dessa vestimenta só sabe dela quem a veste.
Um intelectual lá da França, em um de seus seminários difíceis, da qual a costureira nunca teve acesso a leitura, já dizia o que ela vivia cotidianamente: “O homem é artesão de seus próprios suportes”. Ela era uma mulher artesã de pessoas. As relações eram seus suportes valiosos. Mas não fazia ideia de que era ela o suporte de muita gente.
Resolveu levar suas obras para a vida pública nos quiosques de artesanato da praça da cidade. Falava que havia nascido de novo já na velhice. Estava certa no seu dito, a existência esta lá fora. Mas lá fora é um lugar muito distante, os desprovidos das malhas psíquicas não conseguem alcançar facilmente.
A mulher aprendeu a costurar teoricamente. O aprimoramento veio com a prática. Nada diferente do que já acontece no ensino formal. A diferença era a solidão. Muitas vezes sentiu-se só. “A solidão é o modo que o destino encontra para levar o homem a si mesmo”, disse Hermann Hesse. Ela estava sempre consigo e por isso sabia tanto de si mesma. Um saber que a deixou sempre bordada por tanta gente, de ponto em ponto, nas malhas da vida.
Eduarda Renaux