Quando o joelho começava a doer durante a noite, entre uma mudança e outra de posição na cama, já sabia que viria frio e chuva. Quem sabe só frio. Sua articulação do joelho esquerdo era previsão de virada do tempo. De tanto ouvir que era coisa de sua cabeça, já não falava mais sobre o assunto há muitos anos.
Mas não eram só as articulações que anunciavam que o tempo mudava. O corpo já não respondia mais a seus comandos. Além da pele murcha, os cabelos que antes eram dourados como a claridade refletida na areia do deserto tornaram-se a cor dos alpes no inverno. O que sentia ser por dentro não encontrava destino no que o próprio destino a todos reserva.
Silenciava sobre o que o corpo lhe contava com uma lucidez única, o espírito não condizia com a pele que vestia. Envelhecer era proibido na comunidade, na família e na vida. Não poder reconhecer as viradas do tempo era como impedir a trovoada num dia quente de verão. Tempestades trazem estragos, é verdade. Mas com cada queda uma decisão: a possibilidade de reconstrução ou de aceitação.
Os efeitos do tempo é o descontrole de quem não sente com a cabeça, mas com o coração. A senhora acreditava precisar de um exorcismo. Mas não para livra-la de uma alma maldosa que se apossou de seu corpo. Mas ao contrário, queria livrar-se desse corpo já doente, ruidoso e traiçoeiro que lhe fez abrigo uma vida inteira mas que a agora lhe deixava na mão.
Tem pessoas que segregam pessoas, ela segregava suas limitações. Mas tudo que na vida escondia, no corpo aparecia. O corpo é uma radiografia do tempo. O frio que viria, reza a lenda todos sentem, quando se sabe que o desconhecido se aproxima.
Com toda a sua vivência, deitada, com dor nos joelhos e algumas doenças que já nem sabia que tinha, refletia: Se for para deixar essa vida, que o passado seja poesia e o futuro uma breve dor. Quem vê beleza no futuro não se separa da vida. Quem vê arte na história é grato a generosidade do tempo.
Sua tristeza não era frieza mas despedida. Existem parteiros de corpo, existem parteiros de alma. Ela estava em trabalho de parto e percebia que a vida é pura sabedoria. Todo o parto é desamparo e toda a memória é abrigo. Perder a lucidez é um recurso de quem decide virar o tempo antes que ele vire.
Estar lúcida era amargo mas também sentia o sabor doce de quem opta viver este parto. Fez enfim as pazes com seu corpo e o reconheceu como seu. Toda a sua lucidez era resultado de sua história e não de um corpo trapaceiro. Suspirou fundo como quem reconhecesse que a vida é um sopro, mas também um suspiro. Quem sabe esse suspiro era o vento que faria a virada do tempo que seus joelhos previam.
Eduarda Renaux