Quando chegou, há quase 17 anos, a criadora acreditou que não iria “vingar”. “É muito pequena, se não sobreviver pode vir pegar outra.” No desejo da nova família, ela era na medida. Inclusive a família desenvolveu nela uma espécie de mania de grandeza, ela nunca aceitou o seu tamanho. Até com Pastor Alemão já bateu boca pelas andanças da vida. Se não fosse com alguém do dobro de seu tamanho, nem gastava tempo.

Ainda muito nova e desbravadora, resolveu tomar água que pingava da samambaia, que por azar aquele dia havia sido regada com veneno. Precisou ir para UTI veterinária. “Apenas um em cada três sobrevivem aos danos que ela se meteu”, disse o veterinário, desencorajando as esperanças.

Mas no desejo de sua família, ela aguentaria, porque era uma pequena grande guerreira. Vingou novamente. Se tornou mais uma nas estatísticas veterinárias e ainda maior no coração da família.

Parece história de maluco, mas até guarda de transito ela colocou para correr. A autoridade pediu para encostar o carro. Ela o colocou em uma situação muito inusitada com sua cena dramática, histérica e vergonhosa. Ele resolveu não contrariar e ser responsável por uma tragédia canina, solicitou que o carro seguisse seu caminho. Ela vitoriosa se acalmou. Soberana e sem noção do seu tamanho, a família seguiu viagem ruborizada por sua incompetência educativa.

Eis o dia que encontrou um rival a sua altura, o veterinário de origem guatemalteca, conhecido por fazer pitbulls parecerem puddles em sua presença. Riu de nós quando dizíamos que ela era “um tanto quanto difícil” quando fora do ambiente familiar.

Mas quem ri por último ri melhor, e ela mostrou toda sua inquietude com as coisas que não podia mudar ou entender. Para não esganá-la optou por olhar para as mulheres da família e proferir a épica frase: “ela tiene una personaidad muy própria”.

Finalmente a família pode respirar aliviada, enfim tínhamos um veterinário que lhe deu um tamanho de peso pesado, daqueles de gente grande, a reconheceu no tamanho que acreditava ter. Ela não podia estar melhor assistida. E nós agora sabíamos que nome dar para suas crises de tamanha vivacidade: una personalidade mui própria!

Ele virou seu rival para sempre, e acho que ele chegou até a gostar dela. Devido a um câncer no útero, teve que remove-lo cirurgicamente. O guatemalteco nada garantiu, mas também não trouxe estatísticas. Nos restava nos apoiar na grandeza de espirito da pequena grande guerreira.

Até câncer virou doença pequena com sua mania de grandeza, voltou sã e salva. Mas a velhice e a morte são rivais impossíveis de se vencer. Lutou bravamente contra tudo e todos. E como num conto de fadas canino, teve crise respiratória em um sitio, foi enrolada numa manta simulando sua chegada ao mundo e foi morrendo em paz, reconhecendo a força de seu oponente: o tempo.

Ter um cachorro é ter uma ampulheta em casa, é ver todas as etapas da vida numa cronologia muito acessível a nós humanos. Perde-la é lembrar de um tempo que não volta, de um tempo que já passou. Perde-la é lembrar de tudo que gastamos tanto tempo tentando esquecer: a finitude. Ela sempre lutou pelas batalhas que podia ganhar, ou seja, desde muito nova sabia seu significado. E essa é a verdadeira força de sua personalidade e da marca que foi sua vida conosco.

Enquanto a lembrança não vira saudade, é um presente amargo, dolorido que assola o coração. Não vi minha cachorrinha nascer, nem morrer. Mas tenho clareza do que nasceu em mim com sua chegada e o que de mim vai com ela, na sua partida.

cindy

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