Uma amiga, carinhosamente relembrou que sabia quando eu tinha ido a sua casa pelos rastros de lencinhos nos cômodos. Um colega, em época de clínica-escola, me perguntara uma vez se era eu que deixava um pacote de lenço em cada sala da instituição. No imaginário, os lenços já não eram mais para as lagrimas dos pacientes em sofrimento colocados solidariamente pelos que eram responsáveis pela manutenção do lugar, mas para minha fiel e demandante companheira, a rinite.

Dado esse breve cenário pessoal, alguns podem imaginar que devido a esse eterno congestionamento, meu olfato não deve ser um dos melhores. Mas os cheiros, assim como os lenços, me movem.

Aromas suscitam lembranças. Para esse fenômeno a fisiologia explica a existência do bulbo olfativo que tem intima ligação com a amigdala e o hipocampo, responsáveis pela memória.

Acontece que uma explicação fisiológica se torna pouco útil no cotidiano popular já que são as palavras que atribuem um sentido e um significado que pode nos dar um lugar mais dinâmico no mundo. Fica ao encargo de cada um fazer falar o que essas lembranças dizem de nós.

É muito comum associarmos alguns cheiros com um sentimento de nostalgia. Isso porque é na infância que sentimentos pela primeira vez os diversos cheiros existentes. Os cheiros são tão íntimos que até os perfumes exalam um aroma exclusivo para cada pessoa, nenhum perfume fica igual para cada tipo de pele. A marca é a mesma, mas o cheiro é único e insubstituível.

Quando se trata das narrativas testemunhadas na clínica, esse sentido parece ter uma ligação com o mundo psíquico de forma bem particular. Assim como um sabor, um cheiro verdadeiramente te faz sentir algo. Não só a recordação isolada, mas o lugar histórico que esta recordação suscita.

O corpo é marcado por nossas lembranças. Corpo é memória. Mas nem sempre conseguimos acessar algumas lembranças, pois são responsáveis por um sofrimento intenso, um trauma. Para esse fenômeno, Freud deu o nome de recalque. Algo que precisou ser esquecido, mas que retorna não como forma de lembrança, mas de sintoma. A resolução de um conflito vivido em análise é a difícil tarefa de fazer lembrar, elaborar para aí poder esquecer o que outrora fora insuportável.

Não posso deixar de recordar o caso Freudiano “Miss Lucy” que tratava de uma jovem de 30 anos que perdera o olfato e sofria de alucinações olfativas de pudim queimado e que no decorrer do tratamento passou a sentir o cheiro de fumaça de charutos até a remissão total do sintoma. A resolução desse caso de histeria, só foi possível após várias associações da paciente a partir dos cheiros que alucinava.

O que chama atenção nessa história clínica é a escolha do psicanalista na direção do tratamento: “Resolvi, então, tomar como ponto de partida da análise esse odor de pudim queimado”.

E este foi nosso ponto de partida também quando chegamos no mundo. Diferente de muitos animais que se localizam no espaço pelo que conseguem farejar, o olfato humano parece nos localizar para além do espaço, um tempo e um estado psicológico. Cheiros podem ser bússolas privilegiadas.

Vi num poste da cidade um cartaz que dizia: “Respira o que te inspira”. Acredito que alguns aromas nos inspiram e nos autorizam a viajar para longe, mesmo sem sair do sofá. Respiramos fundo e vamos ainda mais a fundo em nós mesmos.

Eduarda Renaux

Psicóloga Clínica 

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