“Eu sonho a poesia de gestos fisionômicos de um anjo”

(Vinicius de Morais)

O ANJO DESCONHECIDO

 Desembarcávamos  no Santos Dumont, lúcidas e transbordando de angústia do vôo subjetivamente mais longo da história. Dois amores, minha tia e primo, nos aguardavam circulando de carro pelo aeroporto quando o sol já não fazia sua presença de luz.

Minha tia já havia sentido na pele uma arma de fogo na cabeça em um arrastão na linha vermelha, um trauma e uma marca que se carrega para sempre na pele psíquica. Pegar a estrada e esse caminho a noite exigia uma coragem que não era de gente comum.

O Rio de Janeiro mudou o transito, a perimetral já não existe. O caminho? Desconhecido. Os ânimos? A flor da pele. A esperança? A oração forte de quem nos aguardava em Volta Redonda. Mas as três mulheres e o rapaz naquele carro sabiam que orar para chegar salvo não era suficiente se não se conhece o caminho. Eis que um “cara”,  de carne e osso, faz um combinado com minha tia de mostrar parte do caminho para evitar a avenida Brasil.

Minha tia, que sabe que nas ruas habitam também quem te leva sem permissão seus bens mais amados e a confiança em outros humanos faz sua aposta nesse homem. Ato de coragem. O rumo dele era outro, só poderia mostrar metade do caminho. Mas a agonia e medo transbordavam o olhar de minha tia. O cara provavelmente percebeu isso. Seguimos ele de carro.

Seguimos com muita tensão, nenhuma palavra de boas vindas de ambas as partes (minha e de minha mãe para com minha tia e primo, vice e versa). A solidariedade estava no carro em respeitar que era um momento de atenção máxima e cuidado.

Eis que o “cara” mudou sua rota e nos levou até o caminho por nós desejado, mudando o próprio destino e com isso o nosso também. Já de antemão o “cara” foi denominado por nós de anjo. Muitas buzinas celebraram nossa gratidão, que nos pareceu tão insuficiente comparada a tamanha a alegria que transbordava os ânimos do carro.  A flor da pele cedeu lugar a uma flor que desabrochou no coração. A frase célebre: “uma inspiração para 2014 de que os anjos nem sempre tem asas e por sorte cruzam teu caminho”.

O ANJO AO LADO

Sentada na mesa da casa dos meus Avós, minha avó me trás uma caixa com objetos de valor histórico para ela. “Escolhe algo como presente para teu casamento”. Fiquei sem jeito, tudo tão bonito e fino, cristais de bodas de ouro, objetos que por anos vi estampados na decoração das casas dos meus Avós. Seja na casa da Gávea, em Macaé e agora Volta Redonda.

Uma garrafa de vidro, de se colocar uísque dentro, essas de antigamente, me chama atenção. Pergunto qual a história dela. Descubro então que meu Avô foi jardineiro por anos do Poeta Vinicius de Morais que também morava na Gávea.

Selaram uma certa amizade, e algumas vezes beberam uísque juntos na varanda da casa.  Vinicius tinha seu banheiro com parede de vidro que dava em seu jardim. Gostava de tomar banho de banheira olhando suas orquídeas com um uísque na mão e um charuto na outra. Meu avô, cuidando do jardim, quando via a cena dava gargalhada. Certo dia, viu o mesmo fazer esse ritual de entrar na banheira, acenou e continuou seu trabalho.

Após um tempo não conseguiu mais ver Vinicius na banheira, achou estranho. Deu um jeito de entrar na casa, sua intuição não era boa e ele era muito intuitivo. Só um homem com muita sensibilidade faz da terra brotar orquídeas tão inacreditavelmente lindas e robustas. Formosas e delicadas. São sonhos em forma de flor. Meu avô já teve mais de mil espécies de orquídea. Dom herdado de seu próprio pai.

Ao conseguir invadir a casa percebe que Vinicius estava já embaixo da água, estava se afogando. Pede por socorro, gritos pela casa. Vinicius se salva e é salvado. Uma cena nada poética, por certo. Mas um anjo que se ocupa de plantas e pessoas se apresentou.

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Uma garrafa é presenteada por Vinicius para meu Avô. Não sei se por esse ocorrido. Mas a garrafa vazia de líquido, esta cheia de histórias e sentimentos. O melhor presente que eu poderia ter recebido: uma história que inspira, uma garrafa que insistirá a lembrança.

Minha mensagem nesse texto, que celebra a entrada para esse novo ano no palavracolhida, é de que anjos são humanos sem asas. Zeloso e guardador. Não sou muito adepta a humanos que se acham santos. Não aproveitam as boas experiências da própria vida para cuidar muito da vida do outro. Já os anjos são mais gente. Enquanto vão vivendo seus momentos compartilham doses de acolhimento a outrem. Mudam destinos, salvam vidas. Compartilho aqui com vocês histórias que elucidam que a relação com o outro é a base da vida. Não podemos ser perfeitos, podemos errar, sofrer, fazer escolhas difíceis, e ai sim seremos humanos.

Mas atenção: não delegue tua humanidade aos anjos. Os anjos humanos aparecem quando não são chamados, são intrometidos e agem sem falar.  A principio são “caras” sem rosto. As asas são os sentidos imaginários e simbólicos que atribuímos depois da experiência. Uma forma de gratidão e reconhecimento. As palavras tem isso, te possibilitam transformar uma vivencia em experiência.

Quantas palavras cabem em buzinas e em uma garrafa?

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