“A vida é uma tragédia quando vista de perto,
mas uma comédia quando vista de longe ”
(Charlie Chaplin)
Uma criança (deixarei a imaginação do leitor supor a idade) pergunta para um adolescente porque ele podia ver os olhos dos outros e não podia ver o seus próprios olhos. Sentiu-se numa saia justa e respondeu: “Ora, todos são assim, também não consigo ver meus olhos“. Mas a provocação foi tanta que o mesmo ficou por dias com o seguinte devaneio: Sair de si, se ver de cima, de longe, para tentar decifrar como o outro o vê.
Esse devaneio revela como o olhar do outro nos funda e dá contorno a nossa realidade psíquica. Escuto com frequência sobre esses pensamentos de “se ver de cima”, tentar imaginar como seria a reação das pessoas diante da sua morte (sem morrer, é claro!). Todos nós temos pensamentos, sonhos acordados, mas dificilmente revelamos. Freud dizia que é mais fácil compartilharmos as nossas piores falhas do que revelar nossas mais profundas fantasias.
Os clínicos que se ocupam da subjetividade são desbravadores dessas fantasias e fragmentos de histórias em constante repetição, transformação e invenção. Um encontro com um analista é também um encontro com uma empreitada sobre a verdade que cada um carrega consigo, seria como começar a tentar enxergar os próprios olhos. Digo verdade, pois cada palavra falada é uma verdade revelada independente da veracidade dos fatos. A realidade não são fatos, mas ficções e invenções que vão compondo nossa vida.
Freud dizia que apenas com o último homem morrerá o último poeta, enquanto Nietzche propõe que a arte existe para que a verdade não nos destrua. Essas afirmações se complementam! Para que a concretude da vida não nos deixe sem saídas, no fundo todos recorremos as possibilidades da linguagem, criando sentido a nossa existência que a princípio é sem sentido, isso é arte, isso é criação, isso é história narrada, vivida, sentida. Reverter a dor em poesia é como poder transformar o sofrimento em sabedoria. Um saber a mais sobre nós mesmos…
Quase toda a história possui como enredo as perguntas: Como sou aos olhos do outro? e O que o outro quer de mim? Assim como não enxergamos os próprios olhos, acabamos por assumir os olhos do outro como nossos próprios nessa tentativa de enxergar a imagem que o outro devolve de nós. Essa é a novela cotidiana: é comigo ou não? Para os mais neuróticos, essa novela se torna um drama.
Tentem pensar a seguinte cena: Você esta sentado num restaurante e corre uma pessoa em sua direção sorrindo. Você não reconhece, mas a primeira reação é sorrir de volta e se perguntar se de fato é com você e de onde você pode conhecer essa pessoa. Até que esse alguém saltitante abraça a pessoa que esta na mesa atrás de você. Você respira aliviado e embaraçado. No final das contas a vida é um pouco isso, impressões e paralisações, impressões e alívios.
Essa realidade de dentro e essa realidade de fora se chocam e se complementam. E assim, um comentário é tomado como crítica. Uma pergunta se torna uma cobrança. Um “não” se torna “não gosto de ti”, um pedido vira uma ordem. Que confusão!
Quem não se reconhece nesse espelho? Somos atordoados pela demanda de aceitação, de amor, de reconhecimento. Preferimos guardar a dúvida do que correr o risco de ser vaiado na sala. Preferimos renunciar a curiosidade do que enfrentar o rigor dos pais. Preferimos a submissão do que a culpa da transgressão. Não queremos correr o risco de perder o amor do outro. Isso em si não é o problema, a questão é que por muito pouco, por pequenas sutilizas acreditamos que esse amor esta em risco!
No momento venho pensando que temos que estar atentos aos corações de vidro e aos pensamentos de aço. Propor uma torção, não são nossos sentimentos que devem se fragilizar com tanta facilidade, mas nossas convicções. A vida não irá parar de acontecer, mesmo que olhada de cima. Faz-se necessário começar a fazer parte dela. Nem sempre espelhos quebrados serão revertidos em anos de azar…
Enfim, o olhar é provavelmente nosso maior desafio cotidiano, seja de longe, seja de perto, caro Chaplin! A questão é aquilo que foge de um olhar: a vida pode estar uma tragédia quando vista de dentro, e uma comédia naquilo que permito mostrar….