Quando me apresentaram a série Once upon a time (Era uma vez), exibida pela emissora Sony, estava cheia de preconceitos, não apostei muito. Dois episódios foram o suficiente para enfeitiçar. Os contos de fada não saem de moda, fato! Eles abordam temas que borbulham nossa travessia pela vida, e não se limitam a infância. E bem por isso, a série tem como público alvo adultos que através dessas histórias tiveram acesso de forma lúdica aos impasses e possibilidades de constituir-se gente.

Resumo do resumo: Uma maldição é realizada pela bruxa má no reino encantado. Qual a maldição? Eles ficarão presos no nosso mundo, onde não existem finais felizes. A cada episódio a história de um personagem encantado, e ali vai se construindo um conto de dezenas de personagens. A Branca de Neve, o Príncipe Encantado e a Bruxa são protagonistas junto com o mais poderoso de todos os contos, Rumpelstiltskin, que é chamado carinhosamente de Rumple.

Rumple é um homem covarde, cede de seu desejo o tempo todo. Acovardado, acaba por perder muitos que estão a sua volta. Falta de amor? Não, excesso de medo mesmo. Como uma forma de se redimir de tantos medos, ele recorre à mágica. Tenta através do poder equilibrar a covardia. Poder e coragem não se equivalem, podemos ser fracos e extremamente corajosos. As coragens necessárias para construir e lutar pelo que se deseja é o que essa “novela” nos convida a embarcar.

A cada um que cruza seu caminho Rumple alerta: “toda a magia tem seu preço”. Quase nenhum deles, dá a devida atenção a essa advertência. Embora, Rumple seja um dos personagens que mais cativa a minha atenção, é sobre a Bruxa má, chamada na série de Regina, que pretendo decifrar uma possível versão dessa maldição que é abordada.

Regina é atormentada por uma mãe cruel e possessiva. A garota é impedida de realizar seus desejos e seguir seu caminho. Ela aspira à liberdade, que para ela é libertar-se da mãe. Cora (mãe de Regina), uma mulher amargurada e detentora de magia não vê uma filha ali e sim um objeto que deve realizar as próprias ambições. No decorrer, várias tragédias acontecem, mas a pior delas é que Regina acaba a cópia da mãe. Em uma passagem a garota fala: “Não quero acabar como você” e num ataque de fúria contra a mãe a joga em outro reino bem distante.

A tentativa de separação física foi recurso encontrado como uma tentativa de separação psíquica. Tamanha a simbiose das duas, a estratégia falhou. Regina vai ficando cada dia mais parecida com a mãe, ao passo que usa da mágica para manipular a todos a sua volta, bem como a mãe fazia.

Na cidade amaldiçoada, Regina é prefeita e adota um filho. Mais uma repetição familiar que passa para a próxima geração: o filho adotado, em determinado momento, retorna dizendo o quanto não quer ficar igual a mãe. O laço não é o de sangue, mas o da transmissão. Ali foi a cena mais tocante da série, pois a mesma se dá conta de seu equivoco. Arrasada, onde Regina acaba? No sofá do psicólogo.

Ela passa a frequentar o terapeuta da série: o grilo falante, a consciência. Mas de consciência a trama tem pouco. O brilho esta nas motivações inconscientes dessas relações. De que magia estamos falando?

Acredito que a mágica é a do nascimento e o preço que isso nos custa. A dívida da existência é impagável. Algumas mães abusam desse poder e alguns filhos se aproveitam disso. Em especial a relação mãe-filha é delicada, a própria semelhança anatômica é convidativa.

Mães dominadoras geralmente criam filhas tais como. A maternidade é mágica porque fala daquilo que passamos a vida tentando entender: de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. A consciência da existência, a busca eterna por saber mais da criação. A religião e a ciência são as principais protagonistas na tentativa de respostas. A existência é pura magia, mas o que vem depois do nascimento não é tão encantador assim.

Na fantasia da criança, nada mais poderoso que a possibilidade de gerar uma vida. As mães são poderosas não só pela possibilidade de dar vida, mas também uma questão de sobrevivência. Alguns adultos seguem vida afora acreditando que não podem existir sem a mãe, motivo para muitos ressentimentos e amarras.

Uma vida pela outra, eis o que a maternidade pode representar para algumas mulheres. Já outras são tão alienadas a figura da mãe que ficam eternamente identificadas no lugar de filha, a maternidade se torna impossível. O amor exclusivo como tentativa de pagar a dívida da vida.

Parece-me que isso em certa medida ocorre com Regina que não gera um filho, mas adota um. Todas as suas tentativas de ser mãe, falham. O amor dela está aprisionado, sentindo-se incapaz de amar novamente. O amor por outras figuras para além da mãe é muitas vezes, a possibilidade de separar-se, buscar um caminho.

A fantasia que testemunho cotidianamente no meu trabalho, é que abandonar a dependência da figura materna significa deixar de amar, perder sua história original, além de uma culpa avassaladora. Sentir-se responsável pelo sucesso e felicidade da mãe é a tarefa diária e sempre impossível. Tal posicionamento acarreta em uma escravidão.

É muito importante que a menina se identifique com alguns traços da mãe para constituir-se mulher. Mas esse é o início da história e não seu fim. Para podermos constituir-se gente, termos nosso próprio “eu” precisamos nos diferenciar, ter nossas particularidades. Se identificar completamente com alguém é morrer, pois seremos aquela pessoa e não nós mesmos.

Essa é a liberdade aspirada por Regina, ser mulher e feliz, podendo contar com o amparo materno mesmo não correspondendo aos ideais da mãe. A travessia é difícil, mas compensa! A liberdade, assim como a magia, tem seu preço.

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