A antiga expressão “quem tem boca vai a Roma” já ajudou alguns temorosos as novidades a se orientarem em meio a multidão. Quando utilizamos esse dito popular, certamente nos referimos de que quem fala chega ao lugar que for. Não se acanhe! De pergunta em pergunta, você chega lá!

Mas na verdade a expressão original é “quem tem boca vaia Roma“! O verbo não é ir, mas vaiar! Isso porque os impostos na antiga Roma já eram bastante acentuados e era comum que a população utilizasse o dito como forma de revolta.

Esse deslocamento de “vaia” para “vai a” não é só uma questão de fonética, mas de adequação a uma cultura que esta em constante transformação. Provavelmente vaiar Roma já não condiz com nossos tempos e a possibilidade de mobilidade tem seu destaque maior!

Porém, tem um elemento comum as duas expressões que dizem respeito a voz, ou seja, quem tem voz se faz ouvir! Seja pela via da reivindicação, seja pela via do conhecimento. No dia 16 de abril, comemora-se o dia internacional da voz! Essa data não poderia passar “muda” nesse espaço e é através desse dito popular que pretendo aqui prestar minha homenagem.

Objetivamente falando, a voz humana é o som emitido através das cordas vocais para falar, cantar, rir, chorar, resmungar. Enfim, pode ser desde um som orgânico até a forma mais simbólica de relação com o outro.

Provavelmente não lembramos, mas quando bem pequenos fazíamos muitos sons estranhos e cabia a quem se ocupava de nós traduzir o que cada som representava. De um som sem grande significado, os pais dão voz ao bebe, colocam um sentido, uma linguagem. Sendo assim, voz é mais que som, mas uma forma fundamental de relação com o outro.

Feito mágica, temos a sensação de onipotência pois todo o desejo é traduzido. Não por acaso algumas crianças sofrem da sensação de que pensam em voz alta, pois ainda carregam o que restou dessa primeira etapa da vida. Me lembro que quando criança sempre perguntava para minha mãe diante de uma comida estranha se eu gostava ou não daquilo. Como a resposta era sempre sim, comecei a constatar de que algo estava errado. Ela não poderia saber tudo, cabia a mim provar e tirar minha conclusão.

Com o tempo, não precisamos mais que alguém interprete nossos “ruídos”, nossas dúvidas, podemos falar por si só. Porém não raro, percebemos que essa posição mais primitiva permanece. O pedido é que adivinhem o pensamento, o que sentimos. A interpretação é via feição, pelo olhar e não pela palavra. Ou até mesmo a espera de que o outro fale por nós. No trabalho isso é frequente, nossas insatisfações com uma empresa buscam na figura de alguém um “porta-voz”.

Na etapa adulta ter voz é ter vez, é contornar limites, ter posição ativa na vida. Quem tem voz se revela mais, clareando para si e para o outro onde mora o desejo, seja ele insatisfeito ou impossível. Não ficamos no aguardo que o outro atribua significados por nós. Falamos em nome próprio.

A perda da voz implica em uma série de complicações, como sensação de não pertencimento, aprisionamento dos próprios ideais, dificuldade de autonomia e confiança. E problematizando o hoje, podemos pensar que cada vez mais, o pedido é de calar qualquer manifestação daquilo que se expressa em nós. Não queremos saber o que as crianças nos dizem com sua agitação, não queremos saber de nossas próprias tristezas ou oscilações de humor. Queremos silencia-las.

Se ao perder sentimos dor e a necessidade de se recolher é porque isso é um recurso psíquico importante para a restauração do eu frente a um objeto perdido, fenômeno que damos o nome de luto. Mas facilmente buscamos a medicação, antes mesmo de escutarmos no que implicou essa perda em nossas vidas. Ouso dizer que a vida é uma série de pequenos lutos e novas conquistas.

Se por um lado, o pensamento pode ser um convite ao “jogo de adivinha”, por outro tem os guardiões do pensamento, pensam em tudo e não revelam nada. Já dizia Drummond, “Há um certo gosto em pensar sozinho, é ato individual como nascer e morrer.” Sendo assim, o pensamento é intimo, privado. Cabe a nós saber quando convidar ou não o outro a participar do que pensamos. Convidar o outro a fazer parte de nosso universo individual é sair da solidão pensativa e ir rumo a novos destinos.

Dar voz não se trata apenas de falar, mas de possibilitar que aquilo que habita em cada um possa se revelar de alguma forma que não através de sintomas. Consequentemente, a fala flui. Quando o sujeito dá voz aquilo que adormecia em si mesmo, sua posição diante da vida se modifica. Nos apropriamos de uma liberdade única.

Para aqueles que a vida é uma arqueologia de problemas, uma análise é construir e resgatar voz para soluciona-las. Atualmente penso que “Quem tem boca e um analista/divã vai(a) a si próprio“. Por um lado ficamos mais críticos a nossa forma de se posicionar no mundo (vaia), ou seja, nos damos conta que pagamos preços altos demais por nossa neurose. Por outro, temos acesso a caminhos jamais desbravados por nós (vai a). Freud já dizia que uma análise se destina a dar ao paciente uma informação para si mesmo, que é pertinente, que lhe pertence inteiramente, e da qual não tem consciência. 

Nessa semana da comemoração do dia mundial da voz, desejo que todos possam encontrar os melhores recursos possíveis para exerce-la na vida!